"Mas há alguém sobre quem escrevi e que amo muito: Pessoa, esse grande poeta português, que era um fanático de Hamlet e de Shakespeare. Encontra-se nele uma melancolia minimalista: é a melancolia da gota de água que cai, indefinidamente, e que olhamos a cair. É a melancolia do intervalo, diferente da melancolia baudelairiana, mas também uma melancolia poética. É esta melancolia que impele Pessoa a escrever em várias línguas e a ter várias identidades. Reencontra-se assim o problema da pluralidade do Ego, mas na sua versão melancólica - sendo que o mais melancólico é Bernardo Soares, com o seu desassossego do ser. Lembro-me de ter descoberto Pessoa na sua língua: estava sentada junto ao Tejo e sonhava com o seu drama de alma, o seu amor pelas coisas de nada, o verso em que ele encontra Shakespeare ao dizer que não é ninguém, apenas uma sombra. Nesse sentido, é preciso 'acreditar no mundo como num malmequer' (Alberto Caeiro)... Dito de outra maneira, a melancolia é mais o desassossego do que o spleen: e este desassossego conduz a uma estética do artifício e da indiferença. Ser o amante visual de todas as coisas...
Shakespeare, Baudelaire, Benjamin, Pessoa: há toda uma filiação melancólica que realmente me fascinou e que caracteriza a modernidade ocidental. Esta travessia de mais de vinte anos foi-me necessária para chegar ao além da melancolia, graças a uma confrontação com as culturas da Ásia. Na estética pós-melancólica, o efémero é afirmado como positivo e inultrapassável. Ele é, ao mesmo tempo, intervalo ligeiro, aceitação da passagem e da precariedade e, sobretudo, da instabilidade ontológica da nossa finitude. Klee dizia: 'O devir é a nossa única eternidade.'"
Num livro-diálogo com François Soulage ("Une femme philosophe"), a que pertence esta passagem sobre Pessoa e a sua melancolia, Christine Buci-Glucksmann fala da sua filosofia e da sua vida. Ao longo de muitos anos, esta filósofa, antiga professora de Estética e de Arte Contemporânea da Universidade de Paris, tem escrito sobre alguns dos temas mais actuais da nossa cultura. Indo e vindo do cinema à literatura, da arte à tecnologia, da arquitectura à política, Christine pensou a razão barroca, a estética do efémero, a filosofia do ornamento (pondo em confronto o "Ornamento e Crime" de Alfred Loos e a afirmação de Henri Matisse de que "toda a arte é decorativa"), a passagem de uma cultura dos objectos e das permanências a uma cultura das 'imagens-fluxos'. E diz a este propósito "Verdadeiro signo da sociedade, o efémero tornou-se uma nova modalidade do tempo na época do virtual e da mundialização. Efémero das famílias de geometria variável, efémero do trabalho cada vez mais ameaçado, efémero das vidas e das identidades que perdem as suas referências fixas, tudo revela uma espécie de aceleração do tempo, que desenraíza as estabilidades, ocultando sempre o limite extremo do efémero: a morte."
Neste livro-síntese do seu pensamento, Christine fala daqueles que a vigiam e que ela vigia - Heraclito, Platão, Aristóteles, Shakespeare, Vermeer, Caravaggio, Mozart, Nietzsche, Marx, Pessoa, Freud, Klee, Benjamin, Hannah Arendt, Conrad, Borges, Foucault, Deleuze, Barthes, Derrida - e de muitos artistas contemporâneos. Fala das outras civilizações, sobretudo da japonesa. Fala de novos olhares e de novos alvos para eles. Lembra que, para Arendt, a política não é uma lógica de dominação, nem uma estratégia de poder, mas a construção de um espaço plural de comunicação de vozes e de sensibilidades.
Esta é uma filosofia que salta sobre os nossos velhos dualismos (o ser e o nada, a alma e o corpo, o consciente e o inconsciente, o tempo e a eternidade) e que assume o efémero, a imanência, o intervalo, a passagem, a impermanência, a instabilidade, a fluidez, a mudança, a metamorfose, a troca, a articulação, a bifurcação, a duplicação, a pluralidade, a multiplicidade, o movimento, a vaga, a heterogeneidade, a energia. Fazendo sua a tão bela síntese ética de Deleuze: "Estar à altura do que acontece" ("Être à la hauteur de ce qui arrive"), Christine diz: "Da sofística dos gregos, que valorizaram o momento oportuno (o kairos), à ocasião barroca ou à impermanência das culturas da Ásia, esta arte da passagem define uma filosofia e uma sabedoria da existência exposta à fragilidade, porque o efémero é sempre, para lá do trágico, promessa de leveza, de transparência e desse materialismo aéreo de que gostava Bachelard."
Só assim é possível darmos à melancolia o seu além.
José Manuel dos Santos, in Expresso, 23 de Junho de 2009.