sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Pensamentos

        É sempre bom pudermos viajar na nossa memória e recordar os afetos, as conversas, os familares e os amigos. Lá encontramos paz, recarregamos a simplicidade e reencontramos a vontade de fazer a diferença na vida daqueles que amamos.
    Deixo-vos um texto lindíssimo, retirado do DI de hoje. :D
     
 A velha casa

     Volto amiúde à casa da minha infância como quem mergulha dentro de si. Há neste regresso um sabor indizível. Do silêncio das horas um olhar perfeito capaz de descer sobre o tempo exato das coisas. Aquele que o nosso olhar captou com precisão e o registo que dele fez dentro de nós. Faço assim o mapeamento possível da minha existência. Subo em silêncio as escadas amolecidas pelo tempo e entro devagar nos quartos de antes. Na sombra repousam os sons de outrora, quando a casa era um mundo de vozes, luzes e cheiros. A meio da manhã a preparação do almoço aguçava todos os sentidos. O refogado espalhava-se com destreza pelos espaços, dando-lhes novo corpo e significado. A massa tenra espalhava-se lânguida contra o mármore indiferente da bancada. E tendendo a massa tendia-se a vida. No corpo do armário a louça repousava resoluta, certa de ocupar o seu lugar na mesa. As vozes que povoavam o silêncio tinham cores e sabores que o tempo soube meticulosamente apagar mas que a memória, soberana, conservou. Sento-me a um canto e recupero com exatidão o lugar de cada um na mesa, o estalido dos risos ou a violência das lágrimas. Do mesmo exato lugar onde horas depois nasceriam de breves aranhiços pretos os sons que a Recreio dos Artistas espalharia pelos palcos da ilha. Toco nas coisas como quem penteia a vida. Com solenidade. A de quem conserva o valor da memória. O juízo da história. O único futuro que temos é ditado pelo que fomos outrora. Na rua íngreme revejo os solavancos dos carros de antes. A mesma pressa noutras mãos. Na escuridão da casa foram-se apagando devagarinho as vozes agitadas de antes. O piano preto calou-se a um canto, já não sobra muita música no ar. O compasso da vida encerrou-a sem rodeios, condenou-a ao silêncio. Resta por isso a revisitação da velha casa e a segurança da memória para tricotar com afinco a fímbria do passado.

Cláudia Cardoso, in Diário Insular, 16 de novembro de 2012.

(Foto retirada de: www.omtimes.com)

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