Anda para aí uma praga de gente boa que incomoda os outrso, como eu. São contra os vícios, contra os pecados, contra o excesso de sentimentos. Não se enervam, não levantam a voz, não discutem. (...)
Acreditam em qualquer coisa vagamente mística e nas virtudes budistas da temperança. Ambas as fés lhes servem a funda convicção de que o mundo é demasiado humano para o seu gosto. Gostam de conversas calmas, de sentimentos controlados, de comida sem cheiro, de móveis de design, de linhas depuradas e rectas, como o próprio corpo que cultivam. Enfim, acreditam nessa verdade, mais perigosa do que todas as outras, que é a possibilidade de um mundo perfeito. (...)
Se são homens, não têm filhos porque lhes estragam a carreira e tiram a «liberdade»; se são mulheres, estragam-lhes a figura e a «liberdade». Sim, porque eles livres: não prestam tributo ao vício e só respondem por si próprios. A «liberdade» ensinou-os a planear, a prever, fogem do acaso e das circunstancias como se foge de um intruso nocturno. (...)
Somos um monte de pecados e vícios que bate à porta da virtude. E é desesperadamente verdade que eles estão certos; é certo que viverão muito mais do que nós; é certo que eles estão livres de colesterol, de cirroses e de enfisemas pulmonares; é certo que não morrerão de stress, nem de desgostos de amor, nem de aflições paternais; é porvável que nem sequer morram - de coisa alguma.
Quem sabe, talvez este seja o caminho da imortalidade? Livrai-nos, Senhor; dos males do mundo, da condição de homens, dos caracóis com óregãos e do cheiro das sardinhas assadas.
Sim, dai-lhes Senhor o eterno descanso.
(texto com supressões)
Miguel sousa Tavares, in Não de Deixarei Morrer, David Crockett